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ENTREVISTA A AMÍLCAR
VASQUES DIAS (versão integral)
Formação e primeiro percurso
A minha formação inicial foi no seminário. Aí pude
aprender piano e harmónio, um instrumento utilizado nas cerimónias
litúrgicas. Posteriormente - e estou a falar no meu período de
Filosofia, dos 16, 18 anos, e depois, no de Teologia - comecei uma formação
tradicional de escrita harmónica e recebi a influência concreta
do Cónego Dr. Manuel Faria (a quem dediquei a peça Pranto,
ainda antes de regressar da Holanda). Aos 20 ou 21 anos, apesar de algumas hesitações,
a minha vida estava já demasiado apegada à música para
poder prescindir dela... E então fui para o Conservatório do Porto
onde, antes do serviço militar, fiz os primeiros anos curriculares do
curso de piano. Tudo o que eu sabia até essa data era "não
oficial". Tirei então o diploma de piano depois de ter concluído
o serviço militar, em 1974, e isso coincidiu também com o 25 de
Abril e com o desejo de uma certa liberdade vivida noutras paragens. E então,
com uma bolsa da Fundação Gulbenkian, fui para a Holanda, onde
me foi possível prolongar a estadia com uma outra bolsa da Secretaria
de Estado da Cultura (SEC), até me estabelecer de forma permanente. Fiquei
lá 14 anos. Estive no conservatório mesmo depois de ter começado
a trabalhar. Fui professor efectivo na Escola de Música de Roterdão,
durante 8 anos. Vivi em várias cidades da Holanda: em Nijmegen, na fronteira
da Alemanha, em Haia, em Roterdão e em Amesterdão nos dois últimos
anos, antes de regressar.
A estadia na Holanda constituiu um forte impulso para a composição.
Como a recorda, passados já alguns anos?
De facto é um ambiente muito estimulante, passa-se de tudo em todo o
lado. O facto de, a pouco e pouco, nos envolverem no sistema de encomendas também
dá um certo estímulo... E depois, quanto aos professores que tive,
tive a sorte de não serem pessoas com visões curtas. Tudo era
possível, houvesse ou não influências da música jazz,
da música rock, do serialismo, da música de rua, da música
de manifesto (como no caso de Louis Andriessen) ou do minimalismo. Fosse o que
fosse, o que importava é que fosse uma força de expressão
pensada como um objectivo e que tivesse pés e assento, que tivesse firmeza.
O meu professor de electroacústica era um conhecido músico de
jazz na Holanda, era saxofonista. Quando eu cheguei, em 1974, pediram-me para
orquestrar a Grândola Vila Morena. Foi o meu primeiro trabalho
de orquestração na Holanda - e ainda hoje recebo direitos de "arranjador"
resultantes desse trabalho! Uma obra que surgiu na sequência desse impulso
e que apresentei agora - e que não é conhecida em Portugal por
não ser facilmente realizável - chama-se Ser Rana. É
uma peça para dez acordeões, quarteto de cordas e vibrafone. Um
compositor que tinha então um projecto de encomendas propôs-me
uma peça destinada a um grupo de acordeonistas que se chamava D'Accord
Ensemble. O grupo tinha uma qualidade incrível! Entusiasmou-me o facto
de ter de arranjar maneira de conhecer o acordeão, de o fundir com um
quarteto de cordas e com uma percussão à escolha - e eu escolhi
o vibrafone. Entretanto, regressei a Portugal. O título da peça,
Ser Rana, deve-se ao coaxar de milhares de rãs do rio Vouga
e do rio Águeda, entre Março e Julho, 24 horas por dia, mesmo
em frente da casa onde então vivia. Há registos de som de acordeão
que têm parâmetros de semelhança com o som das rãs
- e a minha ideia foi essa, fundir as cordas, o acordeão, e dar à
rã, ao coaxar da rã, a categoria de me encaminhar para uma peça
que começa com uma energia muito forte e depois termina a pouco e pouco.
É um decrescendo... Ao fim de uns meses de contínuo coaxar de
rãs deseja-se o silêncio... Silêncio que agora tenho aqui,
o que traz outras influências à minha maneira de compor, e também
à minha maneira de viver e de apreciar as coisas.
Como descreveria esses anos de actividade artística e pedagógica?
Os anos de actividade artística e pedagógica passados na Holanda
foram excepcionais. Passaram pelas minhas mãos centenas de alunos de
todas as classes sociais e etárias, desde crianças de 10 anos
até adultos de 60 - pessoas que já tocavam piano e que quiseram
retomar a aprendizagem de novo. Trabalhei com miúdos que não faziam
ideia do que era uma nota de música e me apareciam a tocar piano com
três dedos de cada mão. Essa experiência obrigou-me a repensar
tudo o que tinha aprendido relativamente ao ensino do piano, quer dissesse respeito
a miúdos de 17 ou 18 anos que tocavam música para bailes, ou a
miúdos de origem indonésia ou de religião muçulmana
que tinham outra abordagem cultural da música. Da observação
desses miúdos surgiu a percepção do que havia de lógico,
de espontâneo, de intuitivo nessa massa de alunos, sobretudo nos mais
jovens. Fui obrigado a pensar o ensino da música, a pensar o ensino de
"que música", de "quantas músicas"... Eu estava
incumbido não só do piano clássico mas também do
piano "ligeiro". Assim se acentuou um bocadinho mais toda aquela abertura
de vistas dos meus professores, sobretudo do Louis Andriessen, para quem, de
facto, "tudo é possível, tudo depende de ti, do que fazes
com isso".
Tive que estudar e tive que dar um certo swing ao que estava a fazer,
que não era música clássica. E o facto de ouvir outras
pessoas tocar também me deu uma oportunidade de sentir aquilo de que
gostava, ou não, e de o interiorizar. Ao fim de algum tempo, comecei
a sentir que se incorporaram elementos novos que passaram a ser parte integrante
de mim e da atitude de produzir sons. Assim, ao fim de meia dúzia de
anos, a minha maneira de tocar piano ou de compor tem a ver com uma certa atitude
que já não é uma atitude "clássica", mas
uma mistura de diferentes atitudes que têm a ver com diferentes géneros
musicais. De facto, tudo isto é uma progressão - mas a raiz, e
isso é que é interessante, está sempre lá. Os anos
de seminário, com o estudo da linha gregoriana, da simplicidade, da austeridade,
do uníssono, da não polifonia - tudo isso está presente
na minha música. Tenho depois uma parte proveniente da formação
harmónica e romântica, de harmonia gorda e recheada, que eu tentei
conciliar com o despojamento da linha melódica gregoriana. A tendência
que eu tinha para a grande harmonia foi-se rarefazendo a pouco e pouco, e o
que encontro hoje, sobretudo nos últimos quatro anos - veja-se, por exemplo,
o meu projecto 12 Nocturnos em Teu Nome - é a simplicidade.
É a simplicidade porque de facto é no silêncio que eu vivo
quase 24 horas por dia, no despojamento, na magreza da paisagem.
Há bocadinho, quando vinha de carro, olhei S. Miguel de Machede do lado
esquerdo. Agora, está tudo queimado e seco, mas, lá no cimo do
monte, há uma árvore, uma azinheira - isso fez-me pensar no que
é o contraponto. Contraponto é aquela azinheira em relação
a toda uma mancha incrível, seca. E tudo isso tem a ver com o meu passado,
com a simplicidade duma linha, com uma força e uma expressividade fortíssimas,
com o canto gregoriano. Também se espelha no passado a minha tendência
para escrever para coros: é que sempre cantei em grupos corais, no seminário,
desde os meus 12 anos. Em muitas das partituras do meu professor, o Dr. Manuel
Faria, as partes que se destinavam a ser cantadas no coro eram copiadas por
mim, o que constituía também uma aprendizagem fora das aulas.
Tudo isso, a pouco e pouco, e depois a passagem pela Holanda, veio a reflectir-se
naquilo em que eu actualmente ando envolvido. Rentabilizo aquilo que é
mais simples, numa abordagem menos tradicional, menos clássica, dos conceitos
tradicionais da composição, que são a melodia e a harmonia,
mas que são também planos sonoros, que são contraponto
- isso interiorizado e visto à maneira da minha vivência actual,
sobretudo a partir da minha vinda aqui para o Alentejo. Estou a falar de 1996
até agora, já lá vão mais de oito anos.
Como tece a integração dessas categorias musicais e desses
conceitos?
Quando se vive no Alentejo, 24 horas após 24 horas, a primeira coisa
que se sente na pele é o silêncio - que tem sons. Os sons do silêncio
são totalmente diferentes dos sons de algum silêncio provável
em Lisboa, por exemplo. Aqui um som sente-se como um som, mas sei que os sons
longínquos ou menos longínquos de um cão que ladra, ou
de um chocalho de um borrego que está preso algures aqui a uns metros,
naquele monte, ou o som dos grilos, que é um som constante, ou um som
mais longínquo, que é o som das rãs ou sapos, tudo isso
é uma envolvente de um silêncio constante. Eu tento que esteja
presente a ideia de silêncio, e que possa ser interiorizada por quem ouve.
O percurso que eu faço mais vezes é entre o computador e o piano,
esteja eu a trabalhar numa peça para orquestra ou numa peça para
piano. E quase não há rascunhos.
Imagine-se que selecciono um acorde arpejado (mi-sol-si), mais um desenho, uma
notinha que é o dó - e estou a referir-me ao acorde inicial do
1º Nocturno, que se chama Geografia de Rebeldes. Como é
que eu rentabilizo um material tão banal, tão simples, tão
tonal? E a questão não está no tonal ou não, de
maneira que ele tenha uma presença expressiva para que seja interessante
o desenvolvimento desse acorde... Ele pode desenvolver-se sob o ponto de vista
da dinâmica, por exemplo, do registo em que é tocado. Tudo isso
são maneiras que eu encontro de rentabilizar o que é simples e
o que é de facto despojado de outras associações. O principal
não é ouvir ou pensar "oiço algo menor", o principal
é conseguir atribuir a força expressiva que eu tento que esse
acorde tenha. Da mesma maneira que num ambiente em que não se passa nada,
no próprio seio do silêncio, o que se passar tem uma força
incrível, porque se ouve o som desse silêncio. Às vezes,
um ou dois sons que aparecem como pontos fulcrais de uma peça, se forem
interessantes, devem aparecer e ser ouvidos repetidas vezes. E não estão
sozinhos, estão envolvidos por outros sons que aparecem, pela sua fortaleza,
para fazer contraponto. Da mesma maneira que, se olhares ali para cima, o que
se vê são manchas, a maior parte delas queimadas, secas, amarelas.
É o Alentejo dourado, durante três ou quatro meses, até
fins de Setembro. Mas toda essa imagem que nós vemos agora, tudo o que
existe ali, é essa mancha que domina, que é seca, e é despojada
de qualquer interesse visual. Tudo o que existe, pontualmente, neste caso azinheiras,
tem uma força incrível. E depois, há tudo o que tem a ver
com a própria geografia do terreno e que a mim se me afigura como contrapontos,
polifonias e inclinações. Eu vejo e comparo esta evolução
ao longo de todo o ano.
Trabalha num universo tonal?
Sim, linguagem tonal. A canção sobre o poema de Manuel Alegre
Ir a Évora descobrir o branco não tem uma maior carga
expressiva pelo facto de ser ou deixar de ser tonal. Toda a conotação
com a tonalidade é de outra ordem, e está lá, de facto,
essa conotação. Eu acredito que é possível fazer
coisas diferentes com elementos tonais - até nisso a influência
do Louis Andriessen me sossegou, me tranquilizou. Quer dizer, em 1974, se estivesse
cá em Portugal, no ambiente e mentalidade que rodeava o ensino oficial
da música em Portugal, não teria tido coragem para fazer um arranjo
da Grândola Vila Morena, ou do Canto Alentejano... Para alguém
o poder fazer teria que possuir um background, como é o caso
do Lopes-Graça. Mas, infelizmente, eu não tinha sido educado para
isso. Portanto, foi só na Holanda que eu descobri a riqueza melódica
e harmónica de alguma música tradicional portuguesa, influenciado
pela atitude aberta, criativa e inventiva de alguns professores e pelo ambiente...
Durante os oito anos em que fui professor em Roterdão tive alunos das
mais variadas origens culturais: filhos de pais portugueses (emigrantes), filhos
de pais cabo-verdianos (falando português), filhos de ex-coloniais da
Indonésia, pessoas de religiões diferentes, estratos sociais diferentes,
culturas diferentes. Isso ensinou-me a relativizar um bocadinho a nossa cultura.
A experiência com essas pessoas, a observação da sua consciência
cultural, deu-me a coragem de fazer o mesmo. Quando regressei a Portugal, felizmente
já tinha perdido muitos desses pruridos de fazer ou não arranjos
de música ou compor sobre poesia do José Afonso. Foi a oportunidade
de crescer em várias direcções.
Como funciona o seu pensamento como compositor? Quais as técnicas que
emprega?
Eu oiço muito o que quero fazer. Trabalho muito ao piano e experimento
muitos materiais em constante interacção com a minha vontade de
organizar algo para exprimir algo. Por exemplo, se eu pegar em três notas,
que não têm nem deixam de ter mais ou menos interesse por serem
tocadas sucessivamente ou porque fazem um intervalo de terceira menor... Eu
estou ao piano e estou a experimentar a força que têm estas três
notas, ascendente ou descendentemente, e não me interessa estar a dizer
que é uma terceira menor, já que estou a fazer música tonal.
Não, o que me interessa são estas notas, porque são elas
que me caíram debaixo dos dedos. Provavelmente, já ando a pensar
nelas há vários dias, enquanto ando a regar, enquanto ando a ver
como é que estão os frutos, enquanto estou a dar de comer aos
meus cães, ou enquanto estou a olhar lá para fora - estou sempre
a digerir pequenos materiais muito simples. Quando venho ao piano, pego outra
vez nestas três notinhas e coloco-as em oitavas diferentes. O que me interessa
é que estas três notas, com o seu timbre e toda a ressonância
que o piano tem ou que o intérprete lhes vai conferir, realizam certas
alturas, intensidades, registos e timbres específicos, dentro de um movimento
e de uma certa velocidade, dentro de um certo ritmo e duma certa duração.
Estou a fazer uma linha que já está fora dos cânones de
uma linha melódica tradicional, porque está a viver com outros
parâmetros da composição, e eu sei que agora preciso de
um contraponto. Mas eu não vou fazer um contraponto que seja óbvio
no sentido destas três notas - o meu contraponto será talvez do
mesmo género se eu repetisse estas três notas em três oitavas
diferentes, ascendente ou descendentemente (eu prefiro descendentemente). Já
decidi, a nota que vou escolher para fazer este contraponto terá características
diferentes destas a nível de registo, a nível de intensidade e
a nível de timbre e duração. É a nota que eu a pouco
e pouco irei justificar para mim, porque quase a descobri intuitivamente.
É talvez esta mistura entre o que é intuitivo e o que é
exploratório que me vai dar os materiais, e porventura não todos,
das minhas peças. Eu nunca fui de compor peças longas - a mais
longa tem cerca de treze minutos, e é para electroacústica, piano
e flauta. Digamos que o ideal se situa entre os seis e os dez minutos - as peças
que andam à volta de dois ou três minutos fazem parte de ciclos.
Se pensar, por exemplo, na peça sobre as plantas, de que fazem parte
o Tojo, a Glicínia, os Cardos, e várias
outras peças feitas, são peças à volta dos cinco
minutos. Projectos mais longos, como sejam os 12 Nocturnos, situam-se
nos trinta minutos de música. O projecto Lume de Chão
é constituído por vinte e quatro memórias - ou momentos,
ou prelúdios, ou nocturnos. Eu chamo-lhes mais nocturnos, porque de facto
trabalho de preferência de noite, e isso é real - talvez porque
ainda há mais silêncio. Mas são peças de pequena
duração, em que eu tenho uma ideia para exprimir naquele tempo
e depois não me interessa estar a dizer mais. A expressão de alguma
coisa acaba por aparecer ao fim de semanas e semanas de duvidar, de insistir
e de mudar. Tenho que concluir que a peça está a exprimir a lógica
que eu encontrei para ela própria.
Na Geografia de Rebeldes, a harmonia acaba por ser tonal e funcional
- mas não tonalmente. Acaba por ser funcional do ponto de vista tímbrico
- do contraste, do contraponto, sob o ponto de vista de outro som, depois de
toda a introdução feita à base, praticamente, de um acorde.
A ideia, aqui, também estava ligada a uma imagem, ou a um texto que faz
associar imagens...
Relação entre a música, o texto e a poesia
Trabalhei alguma poesia sobre o Alentejo, como é o caso de Manuel Alegre,
de Manuel da Fonseca ou de José Saramago. Acho que me sinto actualmente
próximo das realidades transmitidas por essa poesia, por essa organização
de palavras e sons. Se estou a pensar no verso "irei a Évora descobrir
o branco", eu sei o que é, tenho a vivência disso. Não
quero dizer que quando escrevi Demain, dès l'Aube, sobre poema
de Victor Hugo, não tivesse sido honesto e sincero. Mas, com a Gabriela
Llansol, houve uma grande envolvência com este local e com os restantes
participantes do projecto - o pianista e o actor. Apesar de se tratar de doze
excertos de doze livros diferentes, tivemos uma experiência comum, confrontando
a ideia de Gabriela Llansol de 12 Nocturnos em Teu Nome - título
dado por ela - com o enquadramento musical que eu propus para um projecto concebido
em doze segmentos. Eu leio livros desse tipo, de prosa forte, íntima,
críptica, autobiográfica - poesia ou prosa, quase não sei,
mas é sempre muito difícil de penetrar. E há sempre uma
ideia, que é a primeira, e que muitas vezes decorre mesmo do próprio
título... A rebeldia, para mim, foi pegar numa coisa ultra-simples e
fazer dela uma peça de música interessante para ser ouvida.
Que missão tem a intuição na composição de
Iannis Xenakis? Tem uma missão essencial, pois apesar de todos os seus
cálculos, é justamente através da intuição
que ele decide o que é interessante ou não. Essa atitude, de que
se falou num dos seus workshops que frequentei, fez-me pensar que eu
não tenho que ir buscar muita coisa se sei que a minha intuição
tem muita coisa para dar. E uma das coisas que está ligada à minha
intuição é a forma como funciono ao compor, que é
essencialmente visual. Eu visualizo muita coisa que ouço. Um dos meus
professores dizia que eu tenho uma maneira de compor fílmica, que componho
como quem faz um filme. Eu acredito que, em mim, o facto de estar a compor me
faz normalmente, intuitivamente e instintivamente funcionar com imagens - e
essa imagem está ligada a uma memória de um afecto ou à
expressão de alguma coisa. Pode ser expressão de ternura, expressão
de espanto, de paz, de medo... Tenho aqui atrás de mim uma fotografia
de uma scalaris, que é uma cobra muito comum aqui. Fiz, aliás,
uma peça que se chama justamente Elaphe Scalaris. Considero
estas scalaris monumentos musicais, porque sei que têm música.
Toda aquela organização das escamas sugere-me linhas, da mesma
maneira que olhando ali para um monte, daqui a uns oito meses, quando me começarem
a aparecer linhas ou faixas de lírios roxos, começo a ver que
o monte tem música. Ainda não sei como é que hei-de transmitir
isto, como é que hei-de organizar estas imagens em música. Portanto,
o facto de eu gostar de me ligar à palavra ajuda-me a enriquecer a minha
expressão musical. O facto de eu me ligar à imagem desempenha
a mesma função.
Qual será o seu próximo projecto?
Sei que está ligado ao ciclo das árvores e dos frutos e vai ser
uma peça multimédia. Ando a fotografar todas as árvores
de fruto que estão aqui neste monte, desde finais de Agosto até
fins de Novembro. Eu gostaria de partilhar esta observação com
alguém que nunca terá oportunidade de ver como é que desabrocha
ou como é que rebenta uma macieira em Março ou Abril. E como depois
vem a flor, que vai dar o fruto. Da mesma maneira, faço uma peça
que tem a ver com as primeiras chuvas de Setembro e com a actividade dos anfíbios,
pegando em dezenas de bugalhos e pintando-os de verde e de amarelo, que são
as cores que encontro nos sapos e rãs. Ponho-os todos dentro do piano
e faço um jogo com a projecção de uma centena de imagens
- imagens que chamam a atenção para o respeito pela vida, e por
isso são pedagógicas. O seu interesse reside também na
manifestação de energia do intérprete, ao piano, por exemplo.
O pensamento sobre a música tem a ver com toda esta vida, com a energia
e com a aprendizagem baseada na observação.
Leva-me sempre muito tempo a digerir as coisas, duvido sempre muito tempo, e
portanto vou compondo aos bocadinhos. Isto sempre numa relação
próxima e de interacção com este meu espaço aqui.
Nunca estou mais de uma hora aí sentado a compor, à noite. Estou
sempre a sair, a entrar, a ver, a pegar numa folha, a ver os seus nervos...
e a ver que isto tem música! Porquê? Porque é diferente.
E a sentir as coisas, o tacto das coisas. Tudo isto está numa caldeirada
constante, que tem a ver com a sensibilidade, com a ternura, com a gratidão
- gratidão em sentido muito lato, gratidão com aquilo que nos
envolve, com as árvores que só pedem água para viver. Este
processo faz parte deste meu fazer das coisas, da minha sensibilidade...